“Sentido Indígena: Símbolo da Diversidade” – o título da entrevista com o embaixador Tafkea é o tema do projeto final na licenciatura de Multimédia e Artes de Janice Junrath, que assina o artigo.
Realizei uma entrevista com o guerreiro e embaixador da etnia Fulni-ô, Tafkea, via Zoom, em 24/03/21. Desde então tem sido uma experiência marcante, que me permitiu observar com mais atenção, entender suas características culturais, refletir sobre o modo de vida indígena e buscar sensibilizar outras pessoas sobre a vida dos povos originários, especialmente os Fulni-ô (significa Índios que habitam próximo ao Rio Ipanema, em Águas Belas, Pernambuco).
Gostaria de compartilhar esta experiência e o conhecimento adquirido, por meio de pesquisas e da entrevista, da qual destaco alguns trechos.
Foram reduzidos a menos da metade
Conhecendo um pouco mais sobre a história dos Fulni-ô, que já contaram com 12 mil integrantes e atualmente reúnem apenas 5 mil indivíduos, aproximadamente. Eram sediados no estado do Alagoas. No entanto entre os anos de 1864 a 1870, esta etnia foi convocada para lutar na guerra do Paraguai e ao fim da contenda, por onde passavam de regresso à sua terra, acolheram pessoas de outras etnias que estavam sem rumo.
“Então, eles foram se agrupando, chegando as margens do Rio São Francisco com o Rio Ipanema. As grandes lideranças, se sentaram diante de uma pedra e escolheram o nome Fulni-ô.”
Todos os costumes e saberes desse povo foram transmitidos de forma oral, como resistência conseguiram manter o seu próprio idioma, o Yaathê, que quer dizer “a nossa língua”. Através dela consideram voltar à essência, que os remete ao sagrado, espiritual, “porque dá o fundamento de tudo para o nosso povo. Nosso idioma é uma fonte, é uma chave para abrir essas portas. Mas os velhos não cumprem a sua missão caso não a ensinem a gente. Eles vivem conversando diretamente. A gente aprende com eles e a mesma coisa acontece com os mais novos.” Atualmente, as crianças e jovens indígenas estudam na escola próxima da aldeia, que ensina os dois idiomas, o Yaathê e Português. Aprendem como se fala e como se escreve.
Um povo obediente ao Grande Espírito
Fulni-ô é uma etnia que ainda mantém seus costumes ativos, suas cerimônias anuais, sendo a principal delas o ritual Ouricuri, que tem a duração de três meses, com início em agosto. Sua finalidade principal é promover o equilíbrio. Toda a aldeia participa da reclusão coletiva, onde vota e escolhe o pajé, cacique e demais lideranças. Este ritual é realizado da mesma forma como faziam os ancestrais e mantém bastante reserva sobre detalhes, segundo relato de Tafkea:
“… No nosso ritual, a gente segue os passos de nossos ancestrais, dizendo, por exemplo, que devemos contar lendas, como a do Grande Espírito. Existem tradições a serem seguidas. A mulher não poder ser um cacique, nem um pajé. Cada casa abriga uma família e ela é protegida por um animal de poder. Então, esse animal faz com que a família do cacique tenha sempre um cacique; a família do pajé, tenha sempre um pajé. A mulher já tem o trabalho dela também, ela já exerce a sua liderança normalmente. É como eu, que sou chefe de um grupo, não sou um líder, sou apenas um chefe de grupo. A mulher lidera a família. Eu sou menos ainda. Na nossa aldeia existe uma hierarquia do tipo deus do fogo, deus da água, deus da terra, deus do sol, deus das estrelas, o deus que traz crianças para a Terra, o deus que traz abundância, a prosperidade. Então cada um deles exerce a sua função aqui na Terra. É pouco difícil falar sobre isso porque a nossa religião é muito complexa”.
Os poderes divinos da mulher
Para os Fulni-ô a mulher é divina e sagrada, porque o feminino traz a vida, são as únicas pessoas que dão a vida. Em todos os rituais existe o toque, o traço do trabalho feminino. A pajelança é um exemplo. É um ritual para a cura sagrada, onde, primeiramente, é invocado o poder feminino, justamente para disseminar o amor, o afeto, a luz, a vida, a energia da divindade feminina. Para o povo Fulni-ô, o dia representa o feminino e a noite representa o masculino. Existe esse equilíbrio sagrado entre o homem e a mulher, entre a vida e a morte. E por se tratar do processo de cura do corpo é invocado a força feminina, pois representa a vida. Mas, ao final da pajelança são invocados os espíritos da noite, o poder masculino para a purificar a alma e dar proteção à parte espiritual.
Sobre as ervas medicinais utilizadas durante a cura sagrada: “Nossos ancestrais acreditam que, em um tempo distante, quando os deuses viviam entre nós, praticavam a nossa própria cura. Eles são das florestas. É por isso que não devemos destruí-las, elas nos protegem. No momento em que o Grande Espírito mostrou o poder das ervas foi para nos curar, nos alimentar, para que tivéssemos condições de viver aqui na Terra. A maioria das ervas medicinais são folhas, que servem para fazer chá, purificar o corpo e o espírito. Uma delas é o velandinho, um remédio que serve para o corpo, e que também serve para uma limpeza espiritual. A jurema é muito utilizada para nos transportar ao mundo espiritual, para curas semelhantes. Outra muito usada é a imburana de cheiro, para a defumação, afastar as energias negativas que a pessoa acumulou ao longo de sua existência. Ao usá-la, a pessoa recarrega as energias. A defumação serve para limpar, purificar, fortalecer o espírito.”
A fumaça renova energias
Durante as curas sagradas, os Fulni-ô utilizam “a pena para afastar as agonias, as turbulências que afligem a pessoa e serão levadas para o Grande Espírito. Ela limpa o corpo e, ao mesmo tempo, serve para a comunicação com o Grande Espírito, através da fumaça. A fumaça representa o Grande Espírito, e a fumaça também eleva as preces e pedidos. Quando uma pessoa atravessa um problema muito grande, a fumaça paira sobre ela, para uma reflexão sobre o caminho a ser seguido. Depois, a pessoa deve usar a pena, que é sagrada. Naquele momento, a pessoa canta, faz a defumação e a pena serve para manter uma conexão com a força divina.”
Nos rituais, “a maracá (chocalho) é fundamental porque tem o poder de exaltar a vida. É feminina. Quando dançamos, usamos o ritmo das maracás. Quando um indígena pega a maracá está invocando a força feminina, e ela já está ali, em suas mãos. Quando acontece um ritual em nossa aldeia, a primeira coisa que fazem é vibrar uma maracá. É quando tudo começa.”
O sentido sagrado de um cocar
Para os Fulni-ô, na produção de seu artesanato com materiais naturais, como o cocar, por exemplo, tudo é sagrado. As penas não representam somente a estética, mas a força da ave. Como as aves pertencem a uma ordem espiritual, fazer uso das penas é honrar o seu espírito e ser protegido por elas. Um cocar não tem força espiritual quando a ave é abatida. É um processo de doação da ave para a pessoa que a encontra, quando cai, naturalmente. “…O cocar é mais leve, um poder mais suave porque emana do Grande Espírito. É o poder de comunicação, pois representa o ar e que pode se comunicar com a divindade. Então, as penas estão vivas, para nós elas representam essa comunicação. Principalmente as penas vermelhas e azuis de arara. Elas são são o meio de comunicação que nós temos com o Grande Espírito. As penas maiores, geralmente posicionadas no meio do cocar, são as de comunicação; as outras estão absorvendo as energias de nossos pedidos para transmiti-los à divindade.”
“As lanças e a borduna são utilizadas nos rituais, significando que somos guerreiros. Cada um dançando com uma lança, o seu armamento de guerra. É aí que você estará preparado para lutar, é como estar protegido pelo Grande Espírito, sentir-se preparado, confiante. Pode vir o que vier, que eu estou preparado.
As palhas são utilizadas para nós dormirmos, em esteiras. Nós usamos e vendemos cestos e chapéus de palha. Usamos bastante os chapéus de palha, mas nós também vendemos, para sobreviver. Sobrevivemos da venda de nosso artesanato.
A música invoca os espíritos
Sobre as canções centenárias: “…É a comunicação dos espíritos, evocando a a volta da força e da soberania da natureza. Quando a gente canta, estamos falando a linguagem dos deuses. São as canções que os trazem à nossa presença. Elas são o nosso wi-fi, nosso meio de comunicação com a força divina. Cada canção exige um tipo de dança e justamente é o legado que os deuses nos deixaram.
Sobre das pinturas corporais: “A gente usa um carvão ou jenipapo, mas geralmente a gente usa jenipapo, especialmente quando a gente vai para as cidades. Mas aqui na nossa aldeia a gente usa o carvão com urucum, e uma pedra preta chamada tauá, que também existe nas cores vermelho, branco e amarelo. Dependendo do ritual, usamos as cores para nos fortalecer. A pintura corporal é igual ao colar, você está se camuflando, naquele espírito, você se pinta para se camuflar naquela espiritualidade, como se você representasse ele.”
Para manter um registro de sua etnia, integrantes da tribo formados na área de Cinema e Multímidia produziram algumas gravações com os próprios indígenas como atores, para manter a memória do povo, retratar o cotidiano, a confecção de bolsas, esteiras, a pesca, a pintura corporal, um motivo de orgulho e forma de mostrar como vivem em sua essência.
O vírus é resultado das turbulências
O fenômeno da globalização, de certo modo, interferiu na cultura de muitos povos isolados, buscando unificá-las. Para Tafkea, “na verdade, sempre fomos um povo só. Todos nós sempre fomos a mesma pessoa. Dizem que a civilização começou a dar um passo para frente impulsionada pela curiosidade. Mas, começaram a buscar curiosidades demais e a gente continuou a cantar, ficar junto do Grande Espírito. Mas, infelizmente, a civilização deixou a desejar e a gente está triste. Eles acabaram destruindo o que pode nos curar, o que pode nos proteger. Então, quando se fala nessa globalização, fica até difícil falar porque isso é uma parte muito triste que afeta a todos nós. A natureza não está procurando não só por mim, mas sim por todos nós. Somos filhos dela, devemos curá-la, ajudá-la. Quando acontecem essas turbulências dentro da natureza, a gente chora. O coração da gente chora, por dentro. Porque dali vai acontecer outra turbulência, uma atrás da outra. Por isso surgiu esses vírus, essas coisas todas estão acontecendo. É porque a civilização só busca curiosidades. Os líderes, os governantes, todos buscam a curiosidade, eles não buscam o amor, a simplicidade.
A gente tem que lutar muito e quando vemos as pessoas fazendo um ritual, como o nosso, ou parecido, ficamos esperançosos. Isso quando você vê aquela pessoa com fé, amor e gratidão. Ali, você já passa a ser a pessoa mais feliz do mundo, porque para nós, para a nossa gente, para o nosso povo, o grupo Fulni-ô a civilização quando busca isso é uma porta que se abre no nosso coração. A gente começa a acreditar, sabe que não deve desistir. Temos que lutar sempre por vocês.”
O reencontro com a Mãe Natureza
O sonho do povo Fulni-ô é unir todos os povos, acordar a civilização para o caminho de voltar para a essência, a Mãe Terra.“…Na verdade, nosso povo reza pelo Universo e para todos os seres, para que vocês encontrem aquilo que estão buscando e a sua essência. Há muito tempo, fui para o Rio de Janeiro. Fui criado por um pessoal branco e, depois dali, comecei a ver que a civilização de vocês estava buscando esse equilíbrio, essa força. A partir daquele momento comecei a abrir nosso ritual e esse sonho. Desde então, comecei a juntar um grupo, o grupo Fulidô, que é o nome do nosso grupo. Nós já agregamos e contamos a história da civilização branca. Então, depois dali nós começamos a levar a nossa cultura e abrir para a civilização para mostrar como a gente vive. Nosso sonho é fazer essa união, construir essa ponte para que a civilização possa passar por ela e que a gente continue sendo irmãos e cantar pelo Grande Espírito como fazemos há muito tempo. Este é o sonho da gente!
E como é que a gente idealiza isso? É saindo daqui da nossa cidade, concedendo entrevistas como esta, com os cursos xamãs, com o trabalho espiritual. A gente sai daqui para poder narrar a nossa dor, pregar o amor que nós temos por vocês. Então, nós utilizamos a internet para fazer contato com vocês e tentar mostrar a nossa cultura, mostrar quem realmente somos, ensinar o poder que você tem. A gente faz trabalho mostrando a simplicidade e o poder que a civilização tem. É muito bom a gente estar rezando junto.”
Uma mensagem de Amor
Mensagem aos leitores: “Nós amamos vocês, admiramos vocês, acreditamos em vocês. Espero que vocês também acreditem em vocês. Pois nós temos fé, de que, um dia, vocês vão voltar para casa e a gente vai estar tudo unido, cantando e rezando juntos e vamos estar de mãos dadas, para que o Grande Espírito possa sentir a nossa energia e saber que nós somos filhos e para que ele possa vir nos abençoar.”
Com toda a pesquisa de artigos, livros, vídeos, lives e a entrevista, possibilitaram entender a relação direta dos indígenas com a natureza, especialmente matas, florestas e rios, pois são sua fonte de alimentação, moradia e de materiais para a produção de artesanato de onde advém sua subsistência.
Apesar de todas as adversidades a tribo se mantém unida, cantando, dançando pela cura da humanidade. Apesar de serem os povos originários do Brasil, até hoje, 521 anos após o Descobrimento, ainda precisam lutar pela demarcação de terras, onde são perseguidos, expulsos, mortos para enfrentar os garimpeiros, grileiros e coronéis.
Enfrentam, também, muitos preconceitos por onde passam. Por disso, muitas lideranças tentam usar as mídias sociais para pedir ajuda. Os povos indígenas tentam proteger o local onde vivem, as florestas e matas, pois sabem que ela é a fonte de alimento e cura, além do equilíbrio do planeta onde todos nós vivemos. Defender os povos indígenas é o essencial para manter a vida equilibrada na Terra. São seres humanos com essência, que estão sofrendo com a poluição dos rios e lagos contaminados pelo mercúrio, por conta da prática do garimpo e da mineração. Contribuir com a preservação e conservação da natureza não beneficia somente os povos indígenas, mas todas as cadeias e ciclo de vida presentes no planeta.
Ahooo a todos! – (saudação do povo Fulni-ô que significa por toda nossa relação)
CONTATO – Convido aos interessados em conversar com Tafkea que está disposto a ajudar e a difundir a sua cultura. Fica a dica: caso queiram contribuir com a compra do artesanato Fulni-ô, que sofreu grande impacto com a pandemia, seguem os contatos no Instagram: @tafkea e WhatsApp: 21-99852-0334.