Onde foi parar a alegria de nossos carnavais? Por que os sambas não traduzem mais em versos simples, mas de rara beleza, a magia da cultura popular?
A quem interessar possa: as respostas podem estar numa das salas do Sesc Madureira, na exposição “Cartografias de Augusta”, que vai até o dia 10 de dezembro. Corra que ainda dá tempo. O Sesc fica na Rua Ewbank da Câmara, 90.
A exposição revela enredos manuscritos, croquis de alegorias, fantasias e adereços, esboços de roteiros de desfiles sobre dois temas “abstratos”, que mudaram a história do Maior Espetáculo da Terra. Ambos foram apresentados pela União da Ilha do Governador nos Carnavais de 1977 e 78: “Domingo” e “O Amanhã”. Foram criados e desenvolvidos pela carnavalesca, figurinista, professora da Escola de Belas Artes, e decana do júri do Estandarte de Ouro, Maria Augusta Rodrigues (foto), 81 anos, num tempo em que as Escolas ainda nem sonhavam com o Sambódromo. A passarela ainda era na Av. Presidente Vargas.
Eduardo Gonçalves e Leonardo Antam, curadores da mostra, pesquisaram mais de 600 desenhos guardados há quase 50 anos, e explicam que a exposição foi roteirizada pelo mapa astral da aquariana Augusta, nascida em 22 de janeiro de 1942. “Ele retrata a infância da artista, seu envolvimento com a comunidade e o esoterismo que, atualmente, a absorve intensamente” – explica Antan, também estudioso de astrologia.
Colorido pelo Sol
Logo na entrada, um painel chama a atenção. Meia dúzia de folhas A4, preenchidas na vertical, trazem todo o conteúdo de “Domingo”. Na primeira coluna, em lauda e meia, o texto do enredo, escrito à mão, com caligrafia desenhada de professora. Na coluna ao lado, em três folhas emendadas, todo o roteiro com a representação das alas, amparado por uma “carpintaria” de Avenida: “muitas cores”, “bandeiras”, “animação”, etc. A gente imagina o desfile. Na terceira e última coluna, a artista traduz melhor ainda as suas ideias, com croquis de alegorias e fantasias. Estava tudo ali…
“Vem amor/ Vem à janela ver o Sol nascer/ Na sutileza do amanhecer/Um lindo dia se anuncia/ Veja o despertar da natureza/ Olha amor quanta beleza/O domingo é de alegria…” (Aurinho da Ilha, Adhemar Vinhaes e Ione Nascimento)
Quem não se lembra desse samba? Era tudo muito simples, alegre, claro e colorido. Como um domingo.
– Somente muitos anos depois vim descobrir onde estava a origem do enredo. Estudei num internato. Só tínhamos folga aos domingos, quando saíamos para ver o sol, a alegria das crianças, as pipas no céu. Aquilo estava dentro de mim… – lembra Augusta, considerada uma das maiores autoridades em linguagem do Carnaval.
Segundo a mestra, são duas: a linguagem verbal, através do samba-enredo; e a visual, descrita por alegorias e fantasias.
– Tenho lido alguns enredos que me assustam. Usam uma linguagem erudita, acadêmica. Mas os compositores são populares. A Escola de Samba é uma manifestação popular… – queixa-se das “monografias” carnavalescas, que estão elitizando o espetáculo, tornando-o cada vez mais hermético e distante do entendimento do povo.
Como num sonho
Comparando a simplicidade de “Domingo”, de 1977, com o enredo “Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu”, que deu o título à Grande Rio no Carnaval de 2022, encontramos uma diferença abissal de conteúdos. Se o primeiro se resumia em meia dúzia de folhas A4, o outro ocupou 150 páginas do livro Abre-Alas, que é fornecido para orientação dos julgadores. Mas quem se lembra do samba?
– Quando fiz o “Domingo”, foi um escândalo. Ninguém sabia que enredo era esse. Só começaram a entender quando os sambas saíram à rua contando as banalidades de um domingo. Foi um sucesso, uma coisa inédita. Pude usar todas as cores. Era uma linguagem nova, envolvente. E para escolher o enredo seguinte? Eu tinha três ideias. Marquei um encontro com os compositores e escolhemos o enredo nesse encontro. Li os três, deixando para o final o que eu mais gostava: “O Amanhã”. Fiquei observando a reação deles. O samba começou a ser montado nesse encontro. Dali foram para o bar, onde concluíram outro samba antológico da Ilha…
“A cigana leu o meu destino/ Eu sonhei! / Bola de cristal/ Jogo de búzios, cartomante/ E eu sempre perguntei…”
O enredo pedia mais. Eram tempos de ditadura militar, angústia nas ruas, nas fábricas, nas universidades… O brasileiro temia pelo futuro do País.
“O que será o amanhã? / Como vai ser o meu destino?…” (Didi e João Sérgio)
Já não se fazem mais enredos, nem sambas, como antigamente… Viva Augusta!
(Texto: Cláudio Vieira)