quarta-feira, maio 8, 2024
Machado Vieira Engenharia
InícioDestaqueAndréia Pit dá sequência à luta de Mariana Crioula

Andréia Pit dá sequência à luta de Mariana Crioula

Entrevista com a guia turística Andréia Pit, de Vassouras

Em abril de 2011, quando produzíamos a matéria de capa (“A vez do negro na terra dos Barões) para a edição no 7 da revista Gente do Campo, contamos com a participação fundamental da guia turística Andréia Pit. Há duas décadas, ao menos, Pit – como é chamada – encarna em todas as dimensões de sua vida a História de Vassouras. Esta cidade, no final do século XIX, concentrava as principais plantações de café do Brasil, e, com elas, boa parte da economia nacional e seus proprietários, os poderosos barões. Foi considerada a região mais importante do País, mais até do que a própria Corte, no Rio de Janeiro. Aprendemos muito com o conhecimento e a humildade de Pit, a quem convidamos para inaugurar a seção “Gente do Campo”, que nos ajudará a conhecer um pouco melhor o valor de nossa gente interiorana. Em 2011, não sabíamos, nem imaginávamos, que por trás daquele sorriso meigo e amigo, despertava uma nova versão de Mariana Crioula, companheira de lutas de Manoel Congo, líderes da maior insurreição de escravos da nossa História. Em junho deste ano, Pit arrancou muitos aplausos no Festival de Cinema de Vassouras ao estrelar o curta-metragem “Crioula”, que documenta a vida de Mariana, sua mentora. A entrevista foi concedida a Cláudio Vieira e Marta Queiroz.

Andréia representou Vassouras na última Expo Abav – Foto DSM/ Cláudio Vieira

 DSM – Seu nome, seus pais, seus filhos?

AP – Andréia Alves da Silva. Sou filha da doméstica Neuza Alves Silva e do padeiro José Roberto Silva. Tenho três filhos: Tamires, Felipe e Yasmin. E dois netos: João Guilhertme e Isaac.

De onde vem Andréia “Pit”?

O PIT vem das iniciais de Posto de Informações Turísticas. Inicialmente, era Andréia do PIT, depois virou Andréia PIT. Na época, além da secretária municipal de Turismo, haviam outras pessoas na Secretaria que também se chamavam Andréia. Foi a Forma que encontraram para diferenciar uma das outras. Agora eu sou a Pit. Apenas Pit.

 Nasceu em que dia?

29 de dezembro de 1974, vou fazer 49 anos em dezembro. Sou capricorniana. 

 NE – Capricornianos costumam planejar e traçar seus objetivos e metas. Obstinados, não costumam confiar nos planos feitos por outras pessoas, preferem seguir seus próprios caminhos. São pessoas pacientes e disciplinadas, pois sabem que a conquista de seus objetivos vem através de muito trabalho e persistência.

 Onde?

Vassouras, no Hospital Eufrásia Teixeira Leite. 

 Quando começou o desejo de se tornar uma guia turística, uma porta-voz da história de Vassouras?

AP – Quando fiz um curso de guia turístico mirim. Eu tinha 14 anos. Fui a melhor aluna do curso e, como prêmio, ganhei um estágio no Museu Casa da Hera, onde trabalhei durante os dez anos seguintes. Foi a minha grande escola. Era um curso resultante da parceria entre o Iphan e a Prefeitura de Vassouras, para capacitar jovens da periferia do município.

Cena o documentário “Crioula”, lançado no Festivas de Vassouras – Reprodução

 

Turismo: um divisor de águas

Qual a importância desse curso para a sua vida profissional?

AP – Foi um divisor de águas na minha vida, um despertar de pertencimento que gerou um vínculo com a minha cidade. Foi onde conheci o patrimônio de Vassouras, a minha história e a minha identidade. É onde começa o meu objetivo profissional e a minha paixão pelo turismo, pelo desenvolvimento econômico da cidade, através do turismo. Tudo começou a partir daí.

 Depois, você encarou isso mais a sério ainda.

AP – Isso. Eu fazia todos os cursos gratuitos de turismo que apareciam. Infelizmente, não tinha dinheiro para pagar outros. Meu sonho era fazer a Faculdade de Turismo, mas não havia recursos. Fiz Gestão Cultural em Políticas Públicas, na UERJ, Maracanã, no Rio. Era de graça. Mais tarde, consegui, finalmente, fazer Turismo na Universidade de Vassouras.

Você assistia aulas diariamente na UERJ?

AP – Sim. Pegava carona num carro da Prefeitura que ia ao Rio todos os dias para levar documentos administrativos do município. Comia no restaurante popular, de R$ 1,00, no Maracanã. Foi assim que consegui.

E, depois, conseguiu fazer o curso superior de Turismo.

AP – Sim, foi em Vassouras mesmo. Em seguida, fiz pós-graduação em História da África-Indígena e Afro-Brasileira, que é a minha paixão. É de onde ecoa toda essa força de ancestralidade que grita dentro de mim. 

 Você sempre usou trajes africanos para contar a História de Vassouras?

AP – Quando eu me tornei guia turístico mirim, queria apresentar a história da minha terra de uma forma diferenciada, mais lúdica, que se tornasse mais interessante para as pessoas assimilarem. Nessa época, eu fazia o Café Imperial na Casa da Hera e ali me caracterizava de mucama. 

O que pretendia com isso?

AP – Apresentar a História de uma forma diferente, mas não queria mostrar o negro humilhado, submisso, escravizado, tudo isso que a mídia já batia há muitos e muitos anos. Eu queria trazer toda uma força de resistência negra, dar visibilidade ao nosso povo, à nossa ancestralidade, para contar a nossa história. A visão eurocêntrica (com conceitos europeus) já havia em abundância. Meu objetivo era dar voz aos negros escravizados que construíram as riquezas do Brasil e das Américas

Escravos na secagem do café em Vassouras, fiinal do século XIX, a capital do café – Foto IMS

Jongando com as crianças

 Você dedicou boa parte de sua vida para visitar escolas públicas e contar a verdadeira História do Brasil, que aprendeu em pesquisas e estudos.

AP – Dediquei e ainda dedico. A gente trabalha intensamente com o turismo pedagógico. Eu me caracterizo há 28 anos de Mariana Crioula, para dar visibilidade a essa mulher negra e líder. Trabalhei também num projeto, baseado na lei 10.639 *, atendendo a mais de 15 mil alunos de escolas públicas. Depois disso, continuamos atendendo pedidos de diversos estabelecimentos de ensino, sejam eles públicos ou particulares.

Você acredita no poder da Educação?

AP – Sempre! Somente o conhecimento pode nos libertar de vários paradigmas. Somente assim conseguiremos desconstruir a história do passado para construir a nossa História no presente e no futuro. 

Depois que você espalha essas ideias de conscientização nas escolas públicas já observou, de alguma forma, esses ideais germinarem nas crianças?

AP – Só vejo! Várias vezes já aconteceu comigo, de estar passando na rua e ser abraçada pelas crianças. Eles aprenderam a cantar jongos e repetem, mostrando que não esqueceram as nossas conversas. 

O jongo faz parte de sua metodologia didática?

AP – Sim. Cantando e dançando, as crianças aprendem como os negros escravizados se comunicavam, como eles se articulavam entre si para mobilizar essa resistência. E essa resistência estava presente em tudo que eles faziam. Jongo é comunicação, história, ancestralidade. Poucos entendiam o que eles “conversavam”, quando jongavam. Usavam palavras cifradas, codificadas. Através do jongo circulavam as mensagens subliminares. Jongo é pura resistência negra, é cultura imaterial deixada como legado. Tinha jongo de trabalho, que era lento, dando um ritmo ameno à atividade; jongo de saudade da terra natal; jongo de insurreição, usado para articular fugas, através das mensagens enviadas. A forma de pensar e agir desse povo era altamente inteligente e curiosa. E as crianças aprenderam tudo isso… Não esqueceram. 

Foto de Andréia publicada na revista Gente do Campo / Ricardo Almeida

 

Uma companheira inseparável 

Um dia, você encontrou no turismo a resposta para a sua vida; em outro, viu em Mariana Crioula a personagem para incorporar o seu ideal. Quando isso começou?

AP – Comecei a me caracterizar de mucama no Café Imperial, mas isso não bastava. Queria mostrar essa força de ancestralidade. Pesquisei caminhos diferentes. Interpretei uma negra de ganho, para explicar às pessoas o direito de ir e vir do negro escravizado e a hierarquia que havia entre eles, no século XIX. Mas somente isso não bastava, queria o protagonismo. Nas pesquisas, aprendi muito sobre movimentos de insurreição e a participação de Mariana Crioula como uma grande liderança feminina. Foi quando cheguei à conclusão de que ela representava tudo o que eu procurava: mulher, negra e líder. Foi assim que adotei o pseudônimo de Mariana Crioula e trago ela aqui dentro de mim, me dando toda essa força.

A Mariana Crioula de verdade já se manifestou alguma vez?

AP – (Rindo) Várias vezes… Ela só se manifesta, sério mesmo… (ri novamente) Já tive diversas experiências. Uma vez, estava contando uma história dentro da matriz Nossa Senhora da Conceição, em Vassouras. Tenho o costume de ambientar as pessoas num conceito de época. Notei que um senhor, um turista, estava preocupado com alguma coisa. Enquanto eu falava, ele se mexia, encolhia, mudava de posição… Depois da palestra, ele chegou pra mim e explicou: ‘Tinha uma mulher do seu lado… Era uma preta velha, eu vi…’ Achei natural e comentei com ele: ‘Se ela vem para o bem, que seja bem-vinda.’ 

Andréia leva a história de Vassouras aos alunos da rede municipal – Divulgação

Foi a única vez?

AP – Não, outro turista me disse que, quando olhava para o meu rosto, via a fisionomia de outra negra. Já me disseram que quando vim para esta vida foi com esta missão específica. Isso ficou em mim. Tem até uma música, que o Xande de Pilares canta, chamada “Gratidão”, que eu vivo cantando, como se fosse minha…  

Gratidão… Pela força que não nos deixou desistir… Por ter sido escolhida para essa missão…Obrigada, meu Deus, por você existir… Sempre me deu a mão… Gratidão…
Se eu fugir das origens eu perco meu chão… Obrigado meu povo por fortalecer… Beijos no coração… Esse trecho é muito forte. E eu sinto a energia do nosso povo para levar essa missão adiante.

Você acabou se transformando numa personalidade marcante da cidade de Vassouras. Já passou pela administração de vários prefeitos, de partidos e ideologias diferentes…

AP – Não sou uma política atuante, mas a vida é feita de política. Pessoalmente, sempre me dei bem com todos eles. Independentemente do partido e da pessoa, nosso compromisso é com a cidade e sua História. Amo a cidade, amo o turismo, amo o que faço. Passaram muitos e ainda passarão. Nós estamos.

Andréia e Marta, em Vassouras, 2011 – Foto Ricardo Almeida

(*) Em 2003 foi sancionada a Lei 10639/03 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana“.

RELACIONADAS

O Eldorado está na Sapucaí

Duas Barras

- Advertisment -
Geribá Park Tennis

MAIS POPULAR