Quando os laboratórios ainda não haviam começado a fabricar vacinas contra a Covid, um descendente dos Parintintins, um dos povos indígenas do Amazonas, ajudou a salvar vidas no hospital de campanha montado em Santarém, no Pará. Zenílson Cesário Silva do Carmo não era médico, nem enfermeiro, muito menos curandeiro. Era um ajudante de cozinha que discordava da má qualidade da comida servida aos pacientes: “Não havia sustância” – lembra.
Por conta própria, Zenílson resolveu recorrer às receitas de seus ancestrais. Preparou um mingau à base de farinha de mandioca, misturado com caldo de carne, frango ou peixe, rico em proteínas e nutrientes. Para manter o calor, servia o alimento numa garrafa térmica, acompanhado de sobremesa: musse de cará roxo ou doce de banana da terra. Fortalecidos, os doentes passaram a apresentar sensíveis melhoras, apesar das dúvidas levantadas pela nutricionista – mais tarde, diante das evidências, ela mesma passou a ser uma das maiores defensoras do mingau dos Parintintins.
Condecorado pela França
A novidade foi parar do outro lado do Atlântico, onde um grupo de renomados chefs de Paris enviou uma carta e formulários para que, traduzidos, Zenílson os preenchesse. Entre as várias informações solicitadas, o ajudante descreveu receitas de pratos aprendidos com a sua mãe, Zileide Silva do Carmo, cozinheira de mãos cheias. A maioria deles, feitos com peixes, cujas propriedades lhe foram ensinadas pelo pai, Raimundo.
Semanas depois, Zenílson recebeu nova carta. E, para a sua surpresa, ela continha um certificado e uma medalha distinguindo-o como Embaixador Internacional da Gastronomia Nativa do Brasil. Posteriormente, também teve o seu valor reconhecido por chefs da Alemanha e da Espanha.
Em virtude do talento e da competência, Zenílson se transformou no Chef Zena do Carmo, um dos mais prestigiados do Norte do País. Suas receitas de pratos e temperos podem ser acessadas através de contas no Instagram e Youtube. Algumas delas, no entanto, demandam um custo bem acima do que o consumidor local costuma pagar. “É por isso que elas não constam do meu delivery” – explica.
Não usa produtos industrializados
Zileide e Raimundo pertenciam à quarta geração dos Parintintins, e eram radicados em Cacoal Grande-RO, cidade situada na margem esquerda do Amazonas, a sete horas de barco, de Santarém. Depois que os pais morreram, Zena foi criado por várias famílias, peregrinando por várias cidades da Amazônia, até se fixar na Região do Tapajós. Seu maior patrimônio era o conhecimento transmitido pelos pais, principalmente na gastronomia.
Procurando se aprofundar nos saberes indígenas, visitou várias aldeias. Com a permissão dos caciques, teve acesso a informações preciosas sobre temperos, sementes, raízes, frutos, hortaliças e, sobretudo, peixes. “Cruzava esses dados com o meu conhecimento. A partir das conclusões, criei inúmeras receitas. Todas, porém, seguindo uma regra fundamental: eu não uso produtos industrializados. São todos da Floresta, da Natureza.”
Seus pratos conquistam prêmios
Como ele mesmo explica, suas principais criações não constam do delivery, como o Piráuwasu (peixe com pasta de amendoim), com o qual venceu o Cozinha Tapajós, em 2018, e foi o sucesso do Festival Fartura de Gastronomia, em Sazéu, no Xingu, no ano seguinte. Nesse mesmo ano foi premiado no Festoespa, em Macapá, com o saboroso “Pirápapayá Irúmu” (Peixe com doce de mamão).
Zena esclarece que o êxito de suas receitas está na mistura do festival de sabores de peixes como o pirarucu, pirara, filhote, piraíba, pescada, matrinxã e curimatã, comuns no Tapajós e seus afluentes, com as cores e aromas das frutas da Amazônia – além de temperos especialíssimos, é claro!
O grande sonho do Chef Zena do Carmo ainda não foi alcançado. Interessado, estudioso e apaixonado pela culinária, ainda não conseguiu cursar a Faculdade de Gastronomia – recentemente inaugurada, em Santarém. O máximo que conseguiu, até o momento, foi se graduar em Gestão Ambiental. Como no samba de Martinho da Vila, “a faculdade é particular” e o chef indígena não dispõe de recursos para pagar as mensalidades. Apesar de já ter sido convidado duas vezes para fazer palestras para os alunos.
Experimente o “Peixe Raiz”
O chef Zena do Carmo ensina a receita do prato “Peixe Raiz”, que tem como ingrediente principal o pirarucu.
Ingredientes:
500 g de pirarucu fresco (temperado com sal, pimenta do reino e limão).
600 g de macaxeira (purê)
Duas colheres (sopa) manteiga ou margarina
250 g de feijão manteiguinha de Santarém cozido e escorrido (ou fradinho)
Uma cebola cortada em quadradinhos
2 dentes de alhos picadinhos
Duas colheres (sopa) óleo ou azeite
1 tomate picadinho
Meio cheiro verde picadinho (coentro, cebolinha, alfavaca)
1 pimentão picadinho
Duas pimentas de cheiro picadinhas (não arde)
3 bananas da terra fritas, cortadas ao meio no sentido comprimento.
Modo de preparar:
1- Fritar o pirarucu e desfiar (reserve)
2- Faça um refogado seguindo a ordem dos ingredientes: óleo ou azeite, alho, cebola, pimentão, tomate, pimenta de cheiro e o feijão. Misture o pirarucu e o cheiro verde. Verifique o sal.
3- Purê de macaxeira (cozida com sal e amassada ainda quente com manteiga.
Montagem:
1- Refogado pirarucu
2- Purê de macaxeira
3- Bananas fritas
4- Sirva bem quente com arroz e farofa