domingo, maio 19, 2024
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A hora do Turismo Regenerativo

Rinaldo Zaina Júnior

A pandemia do coronavírus mal completou um ano. Antes dela, uma das questões mais importantes para o setor era o overtourism, o excesso de turistas numa determinada destinação. Hoje a atividade turística foi reduzida drasticamente e podemos ver cenas antes impossíveis, lugares tradicionalmente preenchidos por multidões estão vazios, sem pessoas, apenas o espaço e a solidão de seus monumentos. Uma mudança radical em pouquíssimo tempo e com efeitos econômicos desoladores para os trabalhadores e empreendedores do turismo.

O que tenho lido sobre a retomada do turismo vai no sentido de voltar ao ponto antes da pandemia, como se fosse possível apagar o ano de 2020. Mas a retomada do turismo será mais demorada do que o desejado, e me parece que a expectativa geral é por um retorno aos padrões e procedimentos usuais até 2019. Essa ideia de continuidade do turismo como era antes da pandemia parece um discurso desesperado, porém compreensível, haja vista os significativos prejuízos e desemprego causados pela paralisia da atividade no mundo todo.

O professor Rinaldo Zaina Júnior

PROTOCOLOS – A obediência aos protocolos de segurança sanitária é vital para a saúde pública e isso não se discute. Porém, fundar a retomada da atividade turística em álcool em gel e máscaras é ingenuidade. Imaginar, hoje, a Piazza San Marco de Veneza tomada por turistas é algo sinistro. Assistir às praias repletas de banhistas, aos eventos e festas clandestinos lotados, enquanto os números de mortes escalam recordes diários, demonstra de maneira inequívoca que ainda estamos longe de um convívio seguro e saudável para todos. Cientes de que sempre haverá uma parcela da população, desobediente e infratora, que ameaçará todo o grupo, sem prévio aviso, somos levados a níveis de insegurança maiores do que vivemos depois do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. Por quanto durar essa circunstância, a presença do outro será uma ameaça potencial à vida e, por consequência, a mobilidade do turista estará em cheque.

O discurso da sustentabilidade, que deveria ter sido normalizado, como foi, de fato, em alguns lugares do mundo, aqui, no Brasil, ainda precisa se tornar real e efetivo.

Então, nos resta esperar a vacina! Penso que não. É necessário refletir com mais profundidade. Essa crise apenas nos trouxe um cenário que já se anunciava há bastante tempo. Atravessamos uma crise civilizatória, uma crise da cidadania, onde o bem comum foi subjugado em detrimento do interesse de poucos. O overtourism foi um exemplo disso. O excesso de turistas já causava hostilidade por parte dos residentes em muitos destinos consolidados, e agora toda e qualquer pessoa passou a ser uma ameaça, um vetor de contágio.

Essa condição sempre existiu no turismo, mas a contribuição das viagens para a disseminação de um vírus no planeta nunca tinha sido experimentada nessa velocidade antes. É preciso dizer que os alertas dos ambientalistas foram claros e eloquentes, mas não o suficiente para modificar o modus operandi das viagens. Ou seja, o discurso da sustentabilidade, que deveria ter sido normalizado, como foi, de fato, em alguns lugares do mundo, aqui, no Brasil, ainda precisa se tornar real e efetivo. Esse gap pode ser superado por uma tomada de consciência. O turismo precisa de um reset e não de uma retomada.

Fotos: Pixabay

NOVO COMEÇO – Podemos tomar essa crise como a chance de um novo começo. Esperar que a pandemia tenha inspirado mudanças no paradigma do setor é uma especulação e um desejo. Paradigmas são um conjunto compartilhado de crenças e valores que determinam a maneira como damos sentido ao mundo em que vivemos e como agimos sobre ele, portanto mudanças de paradigmas são complexas, pois envolvem aspectos profundos da cultura da sociedade. E a forma como fazemos turismo é um reflexo desse paradigma. Contudo, se houver diligência e determinação, podemos mudar o mindset de alguns líderes engajados e redesenhar a atividade turística receptiva, para início de conversa.

As viagens curtas, realizadas de carro, para municípios do interior passam a ser consideradas como opções viáveis e potencialmente mais seguras para uma parte considerável da população dos grandes centros urbanos que pretendem viajar no seu tempo livre.

Enquanto as fronteiras restringem a circulação dos viajantes pelo mundo, as localidades próximas aos grandes centros emissores de turistas ganham protagonismo. Essa oportunidade pode representar um começo diferente para cidades que desejam se beneficiar dessa tendência. As viagens curtas, realizadas de carro, para municípios do interior passam a ser consideradas como opções viáveis e potencialmente mais seguras para uma parte considerável da população dos grandes centros urbanos que pretendem viajar no seu tempo livre. Mas temos antes que fazer algumas considerações importantes. Creio que a questão essencial não está no tempo de deslocamento ou na localização geográfica dos destinos, mas sim, na proposta de turismo que essas cidades têm a oferecer. O que há de único em sua cidade? Muitos pensarão nas metodologias para a inventariação turística, mas não é exatamente essa a minha questão.

CONSELHOS MUNICIPAIS – Deixe-me focar um pouco na gestão turística municipal. Faço destaque ao papel central dos conselhos municipais de turismo, que se constituem pelo poder executivo da cidade, seus munícipes e membros da iniciativa privada para o reset do turismo. Esse é locus que pode redesenhar as fundações das comunidades que desejam ser anfitriãs com base na regeneração, porque esse colegiado reúne os atores da hospitalidade local e, com a inspiração correta, podem superar os projetos de poder que se sucedem para perpetuar uma política municipal sustentável. É neste grupo de pessoas e líderes engajados que se pode fundar uma nova base para o turismo local.

A perspectiva de um turismo regenerativo parte da premissa de que não basta preservar ou conservar os recursos naturais, posto que esses ecossistemas estão agonizando ou se extinguindo. Explorar esses recursos deveria exigir um compromisso ético para sua restauração às condições de equilíbrio originais, ou ao mais próximo dessa condição ideal. Essa abordagem muda tudo. É sim um princípio de mudança de paradigma. Pensar na regeneração é deixar de pensar na pegada ecológica e mudar o critério para outra métrica, uma que seja positiva, que se meça o quanto se promove a restauração dos ecossistemas. Já não basta parar a degradação e impedir que se destrua o que ainda não foi explorado. Então, não se trata de melhorar os manuais de boas práticas de hospitalidade, ou de melhorar a gestão da capacidade de carga, ou de reduzir a pegada ecológica. Trata-se de reverter o processo.

O turismo regenerativo aponta para um valor não monetário: ele aposta no valor da conexão. Sim, na religação do homem com a natureza e na vida em equilíbrio.

Sem nos determos sobre a lógica do consumo, mas reconhecendo que as viagens e os destinos eram devorados avidamente por hordas de turistas que espalhavam sua selfies pelas redes sociais para serem consumidas como drops de uma vida perfeita e feliz, toda a cadeia produtiva do turismo e suas contas satélites precisam mensurar o seu efeito multiplicador na economia local e, com base em dados reais e fidedignos, considerar os impactos positivos que têm em toda comunidade receptora e não apenas nos stakeholders – funcionários, clientes, fornecedores, parceiros comerciais.

Quão efetivo é o turismo para a comunidade anfitriã? Isso significa incluir na análise outros atores para além do trade, os meios de hospedagem, as agências, os meios de transporte. As reações dos residentes em cidades que sofriam o overtourism são reflexo dessa questão. O que a comunidade local desses sítios, antes superexcitados pelo turismo, questionava era se valia a pena essa visitação.

Caso tivéssemos esses dados em mãos eu ousaria supor que a comunidade anfitriã não estaria muito satisfeita com o quinhão que recebe de toda a atividade turística, porque não se trata apenas de benefícios econômicos. A hipótese do turismo regenerativo aponta para um valor não monetário: ela aposta no valor da conexão. Sim, na religação do homem com a natureza e na vida em equilíbrio.

INTERCONEXÃO – Então, vamos lá! O que uma cidade pode oferecer de único e especial ao turista? A resposta é simples e desafiadora. Cada cidade é única porque as pessoas que nela vivem são únicas. E se os laços comunitários entre as pessoas abraçarem também a natureza local existe já aí a interconexão necessária ao turismo regenerativo.

Em termos gerais, correndo o risco da superficialidade pelas linhas que temos para conversar sobre o assunto, os projetos que respeitem essa conexão ecossistêmica podem ser estimulados pelos conselhos de turismo e devem possibilitar a inclusão da comunidade e dos visitantes. Sensibilizar toda a cidade, não apenas o trade, as pousadas, os guias, as agências. Os moradores, os comerciantes, os estudantes, os funcionários públicos também devem compreender seu papel e responsabilidade nesse reset. Imagino que as escolas, por meio de uma educação para o lazer para as crianças da cidade, possam se mobilizar, assim como as organizações da sociedade civil, as comunidades religiosas e outras entidades que se interessem pelo tema ambiental também. Isso será importante para o suporte e a manutenção desses princípios no futuro.

SUSTENTABILIDADE – Estreitar os laços de pertencimento, aproximar as pessoas umas das outras pelos laços da solidariedade, fraternidade e da sustentabilidade, dar sentido existencial às viagens são caminhos propostos pelo turismo regenerativo. E nessa perspectiva semântica, tudo muda de lugar, pervertendo a lógica consumista. Os souvenirs não serão mais comprados, pois serão presentes dos anfitriões aos visitantes. O café não será num Starbucks, mas no típico bar da cidade. A hospedagem não será numa rede hoteleira internacional, mas na casa de um munícipe. As fotos não serão de um lugar famoso e badalado, mas sim, de uma paisagem especial que o conectou à natureza e ao planeta. Isso não significa dar as costas às redes sociais, ao Airbnb e toda a sorte de aplicativos tecnológicos que temos à disposição. Significa que se pode utilizar destes recursos para contatar aqueles turistas que têm os mesmos valores que a cidade.

A “nova” oferta ao turista é um valor agregado à viagem, uma dádiva, uma oportunidade de viver e conviver com a comunidade, desfrutar dos prazeres do seu cotidiano.

E a essa altura você está se perguntando: como uma cidade pode ser vendida turisticamente e ainda assim criar laços com seus consumidores? Bem, a oferta ao turista não será apenas a do consumo. Não poderá ser. A “nova” oferta é um valor agregado à viagem, uma dádiva, uma oportunidade de viver e conviver com a comunidade, desfrutar dos prazeres do seu cotidiano, testemunhar suas dificuldades e também participar dos seus esforços para recompor a natureza local.

Ou seja, é uma experiência de comunhão social no seio de uma comunidade que se percebe integrante do ecossistema e que busca, a sua maneira, um equilíbrio sustentável entre sua cultura e seu ambiente. Claro, isso é um processo complexo de colaboração e inclusão entre comunidade e turista, porém, necessário e, principalmente, possível. A compreensão da hospitalidade como dádiva, fundada na tríade do dar, receber e retribuir nos ajuda a perceber as vantagens de mudar a lógica simétrica do contrato comercial entre as partes por outra mais assimétrica, que aposta na retribuição de como possibilidade de construção de vínculos entre visitantes e visitados, como membros de uma mesma comunidade.

CERTIFICAÇÕES – Os turistas podem ser influenciados por certificações de qualidade, mas é pouco provável que se guiem mais por estes selos do que por indicações de amigos ou por postagens nas redes sociais. Contudo, envolver os turistas na tentativa de recomposição ecológica é um objetivo fundamental quando se pensa na viagem regenerativa. Demonstrar o resultado das iniciativas de projetos para o lixo mínimo, o reuso de água, o uso de fontes renováveis de energia, a redução do desperdício, a reciclagem, a neutralização das emissões de carbono, o reflorestamento entre tantas outras práticas sustentáveis, é muito motivador e pedagógico para o turista.

Paisagens limpas, sem lixo, águas não poluídas, biomas com fauna e flora exuberantes, ou em processo de recuperação devido às ações de regeneração são indicadores que explicitam o poder de uma ação benevolente, bem-intencionada, de pessoas, turistas e não turistas, em prol do bem-estar do planeta. Essa é a força e a riqueza na perspectiva do turismo regenerativo, pois proporciona uma experiência profunda e transformadora do papel do viajante: de um consumidor degenerativo para um ator efetivo nas práticas de sustentabilidade numa comunidade de um dado destino. E, quando os turistas se percebem como parte desse processo de regeneração socioambiental, abre-se a possibilidade de uma parceria em longo prazo, de viagens de retorno mais frequentes, porque mais significativas,  posto que podem se manter e reconhecer como seres humanos conectados e empenhados de uma forma positiva para o bem-estar do planeta.

Rinaldo Zaina Junior é Professor universitário, empresário e consultor na área da hospitalidade.

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